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A tragédia ocorrida na L4 Sul, próximo à Ponte das Garças, em Brasília (DF) continua sem tipificação. A Polícia Civil ainda aguarda apresentação espontânea dos suspeitos para prestar depoimentos, pois eles não foram detidos em flagrante. Tratado por testemunhas como um suposto "racha" envolvendo um Chevrolet Cruze prata, um Volkswagen Jetta preto e um Land Rover Evoque, a ocorrência foi provocada por um dos motoristas que perdeu o controle e atingiu o carro de uma família, um Fiesta da cor vermelha. Enquanto os três carros eram dirigidos por amigos que haviam acabado de sair de uma festa em um barco no Lago Paranoá, os passageiros que morreram no acidente, mãe e filho, voltavam de uma confraternização em família.
A Polícia Civil investiga se os envolvidos estavam sob o efeito de bebidas alcoólicas, mas o resultado da perícia nos veículos só sairá em cerca de 30 dias. Além disso, os agentes tentarão recorrer a filmagens e possíveis multas de pardais para confirmar se houve um “racha”. Essa situação leva à reflexão de que todos podem ser vítimas da violência no trânsito.
Para elucidar o caso, o professor de Direito Penal da Universidade Católica de Brasília (UCB), Manoel Águimon Pereira Rocha, esclarece os caminhos para a tipificação da tragédia, que vitimou duas pessoas no acidente da L4 Sul.
Professor Manoel Águimon, quais os tipos de crime que os suspeitos podem ser incriminados e as penalidades?
Segundo o Código de Trânsito e o Código Penal, todo crime praticado na condução de veículo automotor é considerado, em regra, como crime culposo, no qual o agente pratica a infração penal por imprudência, negligência ou imperícia. O crime doloso ocorre quando o agente tem a vontade e a consciência, ou seja, quer o resultado, ou assume o risco de produzi-lo, que é o dolo eventual. Por exemplo, sendo a velocidade da via de 60km/h e o agente dirige a 120 km/h, em situação de “racha”, ele aparenta assumir o risco de sua imprudência resultar em morte. Se for verificado o resultado morte, o caso pode ser enquadrado em crime doloso e, talvez, na forma qualificada, considerado hediondo, terá consequências mais gravosas – com a progressão da pena mais rigorosa e a impossibilidade de fiança, por exemplo. Enquanto o crime de homicídio culposo no trânsito tem uma pena de dois a quatro anos, no crime doloso qualificado será de 12 a 30 anos. Outra questão é que no crime culposo a competência será de juízo singular, ao passo que o homicídio doloso é de responsabilidade do tribunal do júri. Também, os crimes com penas superiores a oito anos são iniciados em regime fechado, por expressa disposição legal.
O fato de os suspeitos terem fugido do local do acidente sem prestar socorro às vítimas pode agravar a punição?
Essa questão é um ponto divergente entre as informações dos acusados e das testemunhas. Em regra, de acordo com a lei de trânsito, os crimes de homicídio e de lesão corporal são culposos. Em acidentes com vítimas, o acusado tem a oportunidade de prestar efetivo socorro à vítima, sendo esta a condição de livrá-lo da prisão em flagrante delito. A lei entende que ele deve proteger a vítima que está possivelmente debilitada e em risco, sobretudo de morte. Realmente, se for comprovado que os acusados do acidente da L4 Sul fugiram sem prestar socorro às vítimas – contatando o Corpo de Bombeiros, observando os sinais vitais ou prestando qualquer auxílio –, a medida adequada para o caso, no momento do fato, seria a prisão em flagrante dos acusados, quer pelos Agentes Públicos (Detran, Polícia Militar ou Corpo de Bombeiros) ou qualquer pessoa do povo – que, por previsão legal, poderá dar voz de prisão. Caso a Autoridade Policial, ao chegar ao local, tenha sido informada de que os acusados fugiram do local do crime, era possível se empreender diligências para efetuar a da prisão em flagrante dos supostos infratores, na forma do art. 302, do Código de Processo Penal. Ultrapassado o flagrante, restou à Autoridade Policial a possibilidade de representação pela prisão preventiva dos acusados, desde que preenchidos os requisitos legais (art. 312, do CPP).
E as mudanças recentes sobre o crime de “racha”?
No trânsito, o “racha” é tipificado como crime pelo Código de Trânsito. No entanto, em 2011, no campo jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que, se o acusado em situação de “racha” praticar um homicídio no trânsito, o correto enquadramento seria de homicídio doloso e não culposo (STF – HC 101698/RJ, Min. Luiz Fux). Caso se reconhecesse o delito de “racha” com resultado morte, conforme Lei de Trânsito, a pena seria de cinco a 10 anos, ou seja, a pena do “racha” é menos danosa do que o homicídio doloso. As alterações do Código de Trânsito permitem a utilização de outros meios de prova para se demonstrar a embriaguez no trânsito, como testemunhas, filmagens, exame clínico, etc. Isso prejudica a pena porque, se for comprovada a embriaguez, somado ao “racha”, há grandes chances de o Tribunal reconhecer tratar-se de homicídio doloso, com condenação entre 24 a 30 anos. No homicídio doloso simples, a pena varia de 15 a 20 anos, e, no homicídio culposo no trânsito, a pena é de, no máximo, 12 anos, numa análise superficial dos fatos noticiados pela mídia.
Professor Águimon, os suspeitos não passaram por bafômetro. Por que?
No direito brasileiro há o princípio constitucional da não autoincriminação, ou seja, a pessoa não pode ser obrigada pelo Estado a produzir provas contra si mesmo. Portanto, ninguém pode ser compelido a soprar o bafômetro, tendo em vista que tal conduta violaria uma garantia disposta na Constituição Federal de 1988.
E, neste caso, é possível pagar fiança e responder em liberdade?
Depende. Se for caracterizado crime culposo, ele poderá responder em liberdade, contudo, se for tipificado como homicídio doloso qualificado, quer pelo suposto “racha” ou por eventual embriaguez, a resposta é não, porque esse enquadramento tornará o crime hediondo, para o qual há vedação legal de concessão de fiança. No entanto, o fato dele sair solto do local, sem uma prisão em flagrante, coloca-o numa condição de suposto responsável pelo crime, mas com a possibilidade de responder em liberdade, porque a chance de prisão é menor. Isso porque uma prisão preventiva, decretada pelo Magistrado, desde que preenchidos os seguintes requisitos legais: garantia da ordem pública – pois a carteira apreendida não o impedirá de dirigir -, pela questão “será que ele voltará a dirigir e adotará a mesma prática?”; no caso de atrapalhar as investigações ou a instrução processual – mediante ameaça ou coação das testemunhas; ou haver informações de eventual fuga.
Você acredita que a lei pode beneficiar os criminosos?
De maneira alguma, pelo contrário, o ordenamento jurídico-penal é muito duro. Todavia não significa que seja algo matemático, pois se exige o perfeito enquadramento do fato à Norma. É verdade que um veículo automotor pode matar muito mais do que um revólver, pois uma pessoa bêbada ao volante pode ser devastador. Então, essa pessoa deve ser responsabilizada pela sua conduta. No Brasil, temos muitas leis penais, mas o problema é a efetividade delas, com sua punição e sua execução. No Código Penal, uma pena de até quatro anos, desde que preenchidos os requisitos legais, poderá ser substituída por penas restritivas de direitos, ou seja, não haverá recolhimento do condenado ao cárcere. A melhor saída, no meu ponto de vista, seria a adoção de medidas preventivas com o objetivo de prevenir a ocorrência de crimes e contravenções – ações preventivas, por meio de políticas públicas, ficando a repressão, ou seja a punição, para uma fase secundária. Os crimes que envolvam a embriaguez e uma corrida ilegal, como o “racha”, nas vias públicas, merece uma atuação mais enérgica das autoridades, em especial, para proteger toda a sociedade, pois a punição com multas, por si só, não tem alcançado o objetivo proposto.
Pelo direito à vida
Segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), entre 2010 e 2014, foram contabilizadas, em média, aproximadamente 43 mil mortes por ano no país, chegando a mais de 215 mil óbitos no período, o que significa que, a cada 12 minutos, morre um brasileiro vítima de violência no trânsito. Durante o mês de maio, o Ministério das Cidades, por meio do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), participará da campanha internacional Maio Amarelo – Atenção pela vida, que busca conscientizar a sociedade e o poder público para essa realidade.
Do ponto de vista do professor Julio Edstron, doutorando em Direitos Humanos e Políticas Públicas, o racha entre jovens é uma questão cultural. Ele pontua como soluções o aumento de blitzes de trânsito e mais controle, como câmeras de trânsito. “O problema deve ser tratado por ações educacionais, como campanhas preventivas em rádios, TVs e escolas, além de atitudes estatais de responsabilização jurídica dos participantes que desmotivem esse hábito. A população deve exigir a alocação de recursos na prevenção estatal com a manutenção e sinalização de vias públicas”.
“A Universidade tem um papel preponderante na formação dos jovens, demonstrando os efeitos e os perigos no trânsito brasileiro. É necessário que haja uma responsabilização do culpado, com indenização por prejuízos materiais, com despesas, ou morais, devido a traumas. A vida humana é uma representação da dignidade da pessoa humana e, portanto, não tem preço”, explicou.
Os reflexos no trânsito brasileiro são fruto de um processo cultural de inserção de normas de segurança: no passado tanto o uso do cinto de segurança, quanto do capacete tiveram severas resistências por parte dos usuários. “No momento, a questão da ingestão de bebidas alcoólicas e a direção estão passando pela mesma transição. Há um excesso de confiança por parte do condutor de veículos, mas uma recente pesquisa do Ministério da Saúde aponta que 25% dos acidentes fatais são causados por um motorista alcoolizado”, complementou.