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2017
mar
24
Geral

Mitos e polêmicas sobre a crise da carne brasileira

A Universidade Católica de Brasília conversou com dois especialistas da área de Nutrição e Biomedicina para elucidar as questões envolvendo as irregularidades das empresas investigadas pela Operação Carne Fraca deflagrada pela Polícia Federal. O professor Samuel Dias Junior, da área de Análise de Alimentos e Microbiologia, e o professor Marcus Vinicius Vasconcelos Cerqueira, da área de Tecnologia e Higiene dos Alimentos e Microbiologia, destacaram os principais mitos e polêmicas sobre o assunto, como a falta de evidências a respeito da análise laboratorial dos alimentos e a equivocada informação de que a denúncia de produtos adulterados e fora do prazo de validade envolvia carnes in natura. Para o professor Samuel, “se as carnes estivessem contaminadas, já teríamos surtos de doenças gastrointestinais”. Outro ponto que essa grave crise acarreta é a quebra de confiança do consumidor, segundo o professor Marcus Cerqueira. A operação, que percorreu sete estados, pretende combater a venda ilegal de carnes no país e já denunciou ao menos 21 empresas produtoras de carne no Brasil.

1. O que a operação Carne Fraca descobriu em relação ao uso de produtos químicos em alimentos?

Prof. Samuel Dias – A Polícia Federal está há dois anos investigando essas supostas fraudes. Eles detectaram, por meio de conversa entre fiscais do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e supostos frigoríficos, que salsichas de peru continham outros materiais, como farinha e fécula de mandioca. Ao longo desse período, a PF está interceptando conversas de áudio por telefone e documentos dos fiscais agropecuários e frigoríficos. Por enquanto, a PF ainda não fez análise técnica de nenhum alimento. As únicas provas que a PF apresentou são conversas e documentos fraudados. Não foi feita nenhuma avaliação laboratorial, com liberação de laudo técnico, e essa é uma questão a ser levantada.

Prof. Marcus Cerqueira –
Utilizar produtos fora do prazo de validade é uma fraude, mesmo que eles estejam com sabor e aroma aparentemente normais. A situação fica mais complicada, principalmente, quando esse produto é resfriado ou congelado. Há microrganismos que produzem toxinas prejudiciais à saúde humana e que mesmo após o processo de cocção não são eliminadas. Há contaminações que não são aparentes, o que se torna um risco para crianças e pessoas com baixa imunidade.

2. Então, a denúncia não envolve carnes frescas?

Prof. Samuel Dias – Não. Mas da forma como a PF divulgou a informação para a mídia, ficou aparente que se tratava de todas as carnes, o que não é verdade. O SIF (Serviço de Inspeção Federal), de responsabilidade do MAPA, tem cadastrado mais de 4 mil frigoríficos e, neste universo, os frigoríficos informados foram cerca de 30, dos quais apenas três foram interditados. Dessa forma, na visão da sociedade, todos os frigoríficos estão cometendo irregularidades, o que é falso. É proibido usar aditivos em carnes cruas, elas devem ser congeladas ou resfriadas.

3. Qual seria o procedimento correto para a análise desses produtos?

Prof. Samuel Dias – Nesta semana, o MAPA montou um grupo de trabalho emergencial para fiscalizar esses locais que foram autuados na denúncia. Somente com essas análises será possível comprovar se houve realmente os delitos ou não. Foi denunciada a fraude de documentos, porém as questões mais específicas foram o suposto uso de papelão, ácido ascórbico e ácido sórbico, além do limite permitido, na carne para mascarar a aparência e o cheiro ruim da carne vencida.

4. Você acredita que havia papelão na carne?

Prof. Samuel Dias – Não. Foi um equívoco na divulgação das informações, talvez, pelo desconhecimento técnico. O produto apontado pela PF era uma Carne Mecanicamente Separada (CMS), destinada à elaboração de produtos cárneos específicos, que é desossada mecanicamente e levada para um frigorífico. Nesse local, as carnes são ensacadas e, conforme a legislação, devem ser colocadas em recipientes plásticos, onde tomam forma, para, em seguida, serem congeladas e empilhadas. Durante a gravação das conversas entende-se que o funcionário colocaria as carnes em caixas de papelão, o que também é proibido, pois pode acarretar uma contaminação cruzada de microrganismos.

Prof. Marcus Cerqueira – O papelão, assim como outros materiais reciclados, não pode entrar nem na área de produção de alimentos, pois a legislação impede produto reciclado em contato direto com alimentos, com exceção de alumínio e vidro. Não há vantagem econômica, técnica e nem nutricional nisso. A pessoa investigada relatava que não poderia entrar com caixas de papelão numa área proibida, por exemplo, na linha de montagem, ou colocar o alimento em contato direto com o papelão. Além de microrganismos, o papelão tem contaminantes químicos provenientes da reciclagem.

5. Muitos estão condenando a utilização de cabeça de porco na produção. É permitido? E o caso da Salmonella na carne?

Prof. Samuel Dias – Sim, inclusive em todo o mundo é utilizado. Na denúncia deu a sensação de que é proibido, mas não é, desde que seja informado ao consumidor. Pode-se usar em produtos de qualidade inferior, numa porcentagem determinada, como adição à salsicha ou mortadela, que são produtos previamente cozidos. Podem existir várias espécies de Salmonella na carne, a exemplo de carnes de frango, que possuem espécies próprias da microbiota, que sabidamente fazem mal à saúde humana. Por isso, essas carnes não podem ser consumidas cruas. Apesar de alguns países tolerarem algumas espécies de Salmonella na carne in natura, a legislação brasileira não admite essa presença.

Prof. Marcus Cerqueira – É um problema de fraude nos alimentos e uso de produtos inadequados para consumo, com prejuízo de saúde e também econômico. Quando você consome um produto, como a linguiça suína, que é feita com pernil de porco, não há nenhum mal à saúde. No entanto, quando se adiciona outros componentes durante o preparo, a cabeça do porco, por exemplo, trata-se de uma fraude econômica, pois o consumidor pagará mais caro por um produto que não possui a qualidade que ele espera, ou seja, um produto de péssima qualidade.

6. O que exatamente o ácido ascórbico e sórbico fazem na carne processada?

Prof. Samuel Dias – São coisas distintas. A carne crua é a mais perecível e deve ser mantida em temperatura refrigerada a 7 °C, de 3 a 5 dias, depois disso, deve ser congelada e terá prazo de validade indeterminado. Aditivos e conservantes só podem ser utilizados em carnes processadas, como enlatados, linguiças, presuntos e salames. O ácido ascórbico, conhecido como vitamina C, possui função antioxidante, e não é uma substância cancerígena. Não há limite na legislação brasileira sobre as taxas aceitáveis desse ácido, admitindo a quantidade necessária para se obter efeitos tecnológicos. A carne, quando se deteriora, tem a mioglobina, antes oxidada, de cor saudável, avermelhada, e, em contato com o ambiente, com a desoxigenação, ela vai adquire a cor marrom. Ao adicionar o ácido, você reverte esse processo e devolve a cor para a carne, porém, não é permitido utilizar esse produto em carnes já deterioradas para “mascará-las”, pois ele não as descontaminará. Já o ácido sórbico é um importante conservante de alimentos, pois tem a função de evitar mofo,ou seja, possui efeito antifúngico. Ele não tem ação contra bactérias e é utilizado para evitar e controlar o crescimento de microrganismos, mas existem limites. Enfim, mesmo se tivéssemos carnes contaminadas e estragadas e grupos de pessoas as tivesse consumido, já teríamos surtos de doenças gastrointestinais, o que ainda não foi notificado no Brasil, em relação aos produtos relacionados na Operação Carne Fraca.

Prof. Marcus Cerqueira – É um grande problema de fraude econômica, pois foi encontrado excesso de sódio também para eliminar a contaminação. O sódio retira a maior umidade do produto. O impacto econômico é ter um produto com menor custo de produção e venda pelo mesmo preço. A grande contradição é que essa substância em carnes estragadas não altera sua aparência, só elimina o crescimento microbiano.

7. A população pode ficar tranquila? Existem critérios e legislações específicas que regulam a atividade de frigoríficos no mercado?

Prof. Samuel Dias – A indústria de carnes brasileira é respeitada e consolidada no mundo, como na União Europeia e na China. Existem critérios, desde a produção, com etapas controladas por regras, para carnes processadas e in natura, e as substâncias e aditivos são adicionados em níveis seguros, estipulados pelos órgãos competentes, como a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Para exportar, é necessário seguir critérios do governo, da empresa e dos agentes que fornecem critérios para exportação do produto. Os consumidores podem verificar algumas medidas nos produtos que são vendidos com código do SIF, que é o selo que comprova que essas marcas passaram por fiscalização. Devemos também desconfiar de produtos vendidos com preço inferior ao do mercado tradicional.

Prof. Marcus Cerqueira – O Brasil é um dos maiores fornecedores de carne no mundo em mercados exigentes e fechados, como o Japão. Nossa legislação é rigorosa e o Brasil é signatário de cartas de comércio no mundo inteiro, que seguem orientações padronizadas para produção de alimentos. Não vamos parar de comer carne, pois o mercado é certificado. Cada alimento tem uma legislação específica para uso de conservantes em produtos ultra processados, que geram mais tempo de prateleira do produto. O que temos agora, é um problema de confiança rompida na área de alimentos. Você compra pela confiança no fornecedor e come confiando no estabelecimento. Quanto tempo vai demorar para reaquecer o setor? Quanto tempo o Brasil levou para ganhar esta confiança? É preciso entender se a crise é algo que afeta toda a cadeia de produção ou se são casos pontuais.

Publicado por Tiago Mendes
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