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Cor da pele, tipo de cabelo, traços ou feições, como o formato da boca ou do nariz. Quais são os critérios que levam uma pessoa a ser considerada com fenótipo de negra, de cor preta ou parda? A questão está sendo discutida novamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde o início do mês de maio, em favor da constitucionalidade da Lei Federal 12.990/2014, a chamada Lei de Cotas, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos no âmbito da administração pública direta e indireta. Para a maioria dos ministros, essa norma é constitucional. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a partir do censo de 1991, a classificação de pessoas incluiu "cor ou raça" e definiu cinco categorias: branco, pardo, preto, amarelo e indígena. Portanto, a raça negra inclui pessoas de cor preta ou parda, que compreende ainda mulatos, caboclos, cafuzos, mamelucos e mestiços.
Um dos temas em debate é a utilização legítima de critérios subsidiários de heteroidentificação, além da autodeclaração de candidato “preto ou pardo” no ato da inscrição no concurso público, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa. No entanto, muitos candidatos que passaram em concursos têm sido reprovados pela banca examinadora e, automaticamente, excluídos do certame, como forma de penalidade, sem qualquer fundamentação. Para o professor Weslei Machado, do curso de Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB), o STF está diante de uma oportunidade de definir critérios de avaliação e rever possibilidades de contestações caso o candidato se sinta lesado. Ele defende uma lógica na avaliação das bancas examinadoras. “Como não há, no âmbito federal, uma lei geral dos concursos, cada banca adota um procedimento diferente, o que resulta em incertezas, inseguranças e prejuízos aos direitos individuais”.
Janaína Ribeiro Nunes Soares, 37 anos, foi aprovada em 2016 no processo seletivo da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp – Exe), para o cargo de Analista Administrativo, nas vagas destinadas às cotas. Depois de passar pela entrevista pessoal, foi reprovada. Entrou com recurso e foi indeferido, sob a alegação de que ela não se enquadrava nos critérios fenótipos da banca avaliadora, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe – Cespe). Mesmo com todas as características de uma pessoa negra, presentes em toda a sua vida, a candidata recorreu, desta vez, na justiça trabalhista. Recentemente, a decisão judicial indicou: Janaína definitivamente não é de cor preta ou parda.
Os três anos dedicados ao estudo e a perda de uma vaga no serviço público deixaram marcas de frustração em sua vida. “Passei a vida inteira sendo negra, mas, agora, preciso encarar que as pessoas me julgam diferente. Trabalho na iniciativa privada ganhando menos da metade do que meus esforços intelectuais poderiam ter me proporcionado”. Ela alega que, mesmo fora das cotas, estaria dentro da classificação. “Bastava eu não ter comparecido à entrevista que, pela ampla concorrência, já teria sido nomeada. Ao invés disso, fui punida com a eliminação do concurso, como se eu fosse uma criminosa, o que não é verdade. Nunca tive dúvidas sobre a minha cor. Sou morena de cabelos cacheados e na minha família todos têm a mesma cor. Uma banca examinadora tem o poder de decidir seu futuro e mudar a sua história em questão de minutos. É humilhante!”, recorda-se.
O debate foi proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com o objetivo de sanar dúvidas sobre a aplicação da lei, que vinha sendo questionada em outras instâncias judiciais. Segundo o professor Weslei Machado, a ação leva em consideração a isonomia no concurso público. “O sistema de cotas foi um meio utilizado para o Estado aplicar a isonomia material, ou seja, tratar os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades. Naturalmente, no Brasil, existe um abismo social, que faz com que as pessoas negras tenham menos acesso a cargos públicos e a uma educação de qualidade”, evidencia. Para a professora Isabel Clavelin, do curso de Comunicação Social da UCB, as cotas possibilitam a remoção de obstáculos objetivos, concretos e sistemáticos aos negros. “Elas representam a ruptura de privilégios para as pessoas brancas, as quais têm obtido vantagens do racismo e da discriminação racial, ao longo de suas trajetórias de vida, sobretudo, no mundo do trabalho, seja em relação a postos, cargos de decisão e prestígio, remuneração e estabilidade”.
De família humilde, Janaína sempre acreditou na educação como caminho para mudar sua realidade, mas sua crença na lei colocou tudo a perder: “Foi o primeiro concurso que fiz pelas cotas e a lei é clara para quem se declara preto ou pardo. Estava desempregada, por isso, estava focada em estudar para mudar de vida”. A administradora conta ainda que sofreu com depressão, problemas familiares e financeiros. “Fiquei deprimida, pois passava por dificuldades financeiras. Por um ano inteiro, estudei 16 horas por dia. Eu me olhava no espelho para tentar entender como posso ter fraudado alguma coisa”, refletiu.
O STF examina se os órgãos públicos podem verificar eventuais falsas declarações de candidatos cotistas, que serão punidos com a eliminação ou demissão, se for constatada a fraude após sua admissão no serviço público. O professor Weslei sugere uma alteração da legislação para, ao invés de excluir o candidato do concurso, permitir que ele participe do certame pela ampla concorrência. “Muitas vezes, o candidato é penalizado, mas se considera negro. Esta forma punitiva é muito severa”, revelou.
Soberania da banca
O professor Weslei esclarece que não há limite de tempo para recorrer na justiça, e o prazo independe da validade do concurso. No entanto, a soberania da banca examinadora em suas decisões é um consenso no Poder Judiciário brasileiro. “Em regra, se o parecer não for flagrantemente ilegal, ou seja, afronte a lei, o mérito do ato é mantido. Isso porque o judiciário não pode substituir a Administração Pública. A banca possui especialistas que auxiliam na execução de suas tarefas, para avaliar a condição de negros em entrevistas, e o judiciário não possui essas ferramentas técnicas”.
“Caso reconhecido um erro da Administração Pública, o Poder Judiciário determina a reintegração desse candidato dentro das vagas para cotas. Se alguém tiver ocupado a vaga e o prazo da estabilidade tiver passado, essa pessoa é colocada em disponibilidade e o candidato negro ingressa na vaga de direito. Por meio de um pedido liminar de antecipação de tutela, é possível reservar a vaga até que o mérito do processo seja julgado, para não haver prejuízos. Outra hipótese é quem estiver na vaga perder o cargo ou ser colocado em disponibilidade”, explicou o especialista em direito constitucional.
Discriminação racial em debate
Janaína Ribeiro atribui a reprovação ao fato de não possuir a chamada “consciência negra” e diz que a lei não tem nenhuma aplicação prática. “A Lei é mais um discurso do que uma realidade. Nunca fui branca para ter privilégios, como bons colégios e empregos, e, agora, não sou negra nem branca, apenas uma excluída. Nasci no interior da Bahia onde todos são negros. Sou a primeira da família a ter nível superior e não há ninguém concursado, pois não têm estudo. Apesar da reprovação da banca, a minha cor permanece a mesma. Estou fazendo tratamento psicológico, mas estou convicta da minha cor”.
Em caso de ações discriminatórias aos candidatos que ingressarem pelas cotas, o Estatuto dos Servidores Públicos Federais, criado pela Lei 8.112 de 1990, prevê sanções de infrações ético-disciplinares. “Quem discrimina um colega no local de trabalho está cometendo uma infração disciplinar. Em nenhuma hipótese podemos admitir discriminação dentro da Administração Pública e nem mesmo fora dela. Ainda é preciso haver uma mudança de cultura. Quem ingressa pelas cotas não está recebendo um privilégio, mas estão participando de uma ação afirmativa para correção de problemas sociais vivenciados no Brasil”, explicou o professor Weslei Machado.
O artigo 4º da Lei de Cotas trata dos critérios de nomeação dos candidatos cotistas aprovados em todos os momentos da vida funcional dos servidores públicos. Clavelin acredita que a Lei de Cotas é um “ajuste de contas” para o fim do racismo e pela promoção da equidade racial no Brasil, que impedem o ingresso de pessoas negras no mundo do trabalho e assegura a diversidade nos quadros do funcionalismo público federal. Para a professora Isabel Clavelin, “as pessoas que ingressam em espaços sem diversidade racial têm sido alvo de uma série de intimidações, desqualificações e até mesmo perseguições de cunho racista, que visam desestabilizar e inviabilizar a permanência de negros. Essas pessoas passam por processos seletivos rigorosos e detêm a formação necessária para a execução de suas atividades no funcionalismo público”.
A pesquisadora em Comunicação aponta como obstáculos a falta de padronização de monitoramento e de transparência das informações por parte das organizadoras dos concursos, do processo de inscrição às fases classificatórias e eliminatórias. “São fartos os questionamentos e impugnações com o propósito de impedir a aplicação efetiva da Lei 12.990/2014, alegando inconstitucionalidade da norma. Isso faz com que negras e negros, que são discriminados pelo fenótipo, tenham de travar verdadeiras batalhas jurídicas para afirmar um direito reiterado pela própria Lei”, destacou.