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2010
abr
08

Páscoa: Festa da vida e da Libertação

José Lisboa Moreira de Oliveira*

 

 

A celebração da Páscoa, como a celebramos atualmente, tem as suas origens em tempos muito remotos. É o resultado da confluência de duas grandes culturas da humanidade: a agrária e a de criadores de animais. Segundo Momolina Marconi no seu livro Prelúdio à história das religiões (Paulus, 2008), ela já era celebrada de forma muito rudimentar há pelo menos uma centena de milênios. No hemisfério norte, onde o inverno era muito rígido e as plantas ficavam desprovidas de folhas e de frutos, a chegada da primavera significava para os agrupamentos humanos uma verdadeira festa. Por essa razão os povos daquela época costumavam fazer uma grande festa para oferecer aos deuses, num verdadeiro gesto ritualizado, as primeiras folhas e, mais tarde, os primeiros frutos.
No período conhecido por Neolítico, que começa por volta de 10.000 a.C. e se estende até 4.500 anos a.C., o ser humano começa a se fixar na terra. E, além da coleta de vegetais, passa a domesticar e criar animais (cabras e ovelhas) para a sua alimentação. Neste momento acontece o outro elemento cultural significativo que está na origem da festa da Páscoa. Agricultores e criadores “oferecem as primícias de rebanhos ou de plantações à divindade, a quem, afinal, tudo pertence; a ela são oferecidos o primogênito – inclusive o primogênito humano – e o primeiro maço de espigas: um gesto de simbólico resgate, que deixa o homem livre para consumir o que foi tirado da natureza; e para que o homem não se esqueça – ai dele se isso acontecer! – de que o seu deus é o senhor invisível e temível de tudo” (Marconi, p. 44).
Entre 1700 e 1550 a.C. tribos nômades da região conhecida então como Canaã descem até o Nilo e ali se estabelecem aproveitando das águas e das terras férteis das margens do rio para a prática da agricultura e da criação. Porém, no século XIII a.C. a XIX Dinastia que reinava no Egito decide a construção das cidades entrepostos conhecidas como Pitom e Ramsés (Êx 1,11), localizadas na parte oriental do delta do Nilo. Para a construção utilizou-se da mão-de-obra desses povos nômades que ali haviam se estabelecido, submetendo-os a trabalhos forçados, em verdadeiro regime de escravidão (Êx 1,11).
Houve então uma revolta dessas tribos que se recusaram a continuar trabalhando em regime de escravidão. E, por volta do ano 1250 a.C., essa tribos deixam o Egito e voltam à vida nômade vagando por um período na região conhecida como deserto do Sinai, sob a pressão contínua do faraó do Egito (Êx 14,5-20). Entre 1230 e 1220 a.C. essas tribos se estabelecem definitivamente em Canaã e restabelecem a agricultura e a criação de animais, voltando a oferecer à divindade os primeiros frutos da terra (Js 5,10-12). Esse episódio da saída do Egito até o estabelecimento na terra de Canaã foi sendo narrado oralmente e aos poucos ficou conhecido como a saga do Êxodo liderada por Moisés que, chamado por Deus, guia essas tribos até a “terra prometida”, Mais tarde esse episódio foi inserido na Bíblia judaica.
As tribos se decidem por um culto monoteísta em torno do Deus de Israel (Js 24,14-28), o mesmo e único Deus que antes da descida para o Egito era adorado por aqueles que se proclamavam descendentes de Abraão, “pai de uma multidão de nações” (Gn 17,5). As tribos fixadas em Canaã, depois da saída do Egito, atribuem à vontade desse Deus o retorno para aquela terra. Em razão disso decidem também relacionar a festa das primícias, celebrada na primeira lua cheia após a chegada das flores (entre final de março e a primeira metade de abril) à saga do Êxodo. E passam a chamar essa festa de pashá (aramaico) e, mais tarde, pesah (hebraico), isto é, passagem, com a finalidade explícita de fazer memorial da passagem de Javé pelo Egito, o qual realiza a libertação do povo. E para esta festa estabelecem todo um ritual (Êx 12,1-27).
Jesus era um hebreu e desde criança celebrava a Páscoa com seus pais (Lc 2,41). Antes de ser preso, na véspera do seu assassinato, celebra com seus discípulos todo o ritual pascal judaico (Mc 14,12-21). Porém, dá à celebração da ceia pascal hebraica uma dimensão nova. Introduz dentro do rito algo novo, inédito: o memorial de sua entrega pela humanidade (Mt 26,26-29). A partir daquele momento a ceia pascal passaria a ter um significado novo. Baseando-se no gesto de Jesus, já as primeiras comunidades cristãs passam a celebrar a Páscoa não mais como memorial da libertação do Êxodo, mas como memorial da morte e ressurreição de Cristo (1Cor 11,26). Entendem que em Jesus se dá a Páscoa definitiva, a passagem da morte para a vida, da escravidão para a liberdade. O próprio Jesus é a Páscoa, o cordeiro pascal (1Cor 5,7).
É possível então concluir que a Páscoa é a celebração da vida e da libertação. Nós primórdios, celebração da vida que ressurge nos brotos das árvores, nas flores primaveris, e nos primeiros frutos. Na Páscoa judaica a celebração da libertação da canga da escravidão. Na Páscoa cristã o memorial da vitória de Jesus sobre o pecado, a morte, a dor e a injustiça.
Por essa razão celebrar a Páscoa hoje é amar e defender a vida, repudiar toda forma de escravidão e de injustiça. Para os cristãos a Páscoa é a atitude de rompimento com o “velho” para revestir-se do “novo” (Cl 3). Para os cristãos, Cristo já fez acontecer em nossas vidas a Páscoa definitiva. Porém, permanece o desafio de celebrarmos a Páscoa de maneira plena, acreditando na força libertadora de Cristo e assumindo uma postura de pessoas ressuscitadas. Haverá Páscoa quando nos dispusermos a cultivar novas relações, cientes de que neste mundo só existe um único Senhor, aquele que está nos céus (Cl 3,18-4,1). Segundo o místico cristão Arturo Paoli, a Páscoa, hoje, “é a passagem do mundo da desunião à comunhão, da ruptura ao encontro, da relação rompida à relação renovada”.

 

*Filósofo, teólogo, professor de Antropologia da Religião e Ética e gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da UCB.

 

 

Publicado por Tiago Mendes
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